quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Persistência dos sintomas

Continuava à procura dele, das invasões ao corpo, do homem que lhe transformava os delicados lençóis em animais que lhe raspavam as costas até lhe deixare a pele em ferida.
Procurou-o em olhares de fogo nas caras dos transportes públicos, mas só encontrava olhares inertes, corpos resignados.
Desesperada, abordou um desconhecido no Metro. Não lhe interessava quem ele era, com quem se parecia. O corpo rugia-lhe numa fome que a cegava.
- Deixa-me fazer de ti um animal. Fode-me o corpo, quero ser a tua puta até ficar rouca de gemer...
O homem sorriu-lhe delicadamente, olhou para o relógio que levava no pulso e respondeu-lhe:
- Claro que sim, menina. São sete e cinquenta e quatro. - dito assim mesmo, literal ao máximo de uma boca humana.
Ela sentiu-se abater, compreendendo imediatamente tudo. Era a persistência dos sintomas: tal como quando se encontrava esmagada contra os lençóis também agora não controlava as palavras, mas agora com o efeito exactamente inverso.
Não desistiu. Queria um corpo de Homem só para ela, urgentemente, fosse ele qual fosse.
Aproximou-se outra vez do desconhecido literal. Pousou-lhe a mão ao de leve no peito, e assim encostada roçou-lhe ao ouvido:
- Não percebes?.. Quero que me enchas a boca de ti, que te venhas a agarrar-me a cabeça, a engasgar-me de ti...
O desconhecido literal voltou a dar-lhe o sorriso amável:
- Claro que sim, menina. A menina sai na próxima, e sobe as escadas à sua esquerda. Eu não é se a esta hora a bilheteira ainda estará aberta.
Ela baixou os olhos, a cara, o corpo. Saiu realmente na seguinte, sentou-se no primeiro banco e pela primeira vez em meses chorou de raiva.
"Cabrão, filho da puta. Cala-me o corpo agora, cabrão de merda."
Foi assim que a persistência dos sintomas passou a ser uma enorme e dolorosa dúvida. E não havia folheto ou especialista que ela pudesse consultar, mesmo até ao fim da doença.